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quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Venezolanas






Antes de mais nada confesso que foi Hugo Chávez, aquela curiosa mistura de milico, populista-defensor dos pobres, dublê de apresentador de tevê e caricatura você-sabe-de-quem, o principal impulso para minha incursão à Venezuela. Primeiro, porque queria muito conhecer in loco um de nossos vizinhos atualmente mais influentes (e estridentes); e segundo, porque tinha um certo receio de que as coisas por lá ficassem ainda mais convulsionadas (esse é o tom, em todos os sentidos, para tratar de Venezuela). Se, algum dia, no futuro, a Venezuela venha a ser descrito como um país pacífico, eu gostaria muito de poder dizer que estive lá, por essa mesma época.

Andava tão ansiosa com a viagem que, dias antes de ir, já sonhava com o que eu queria encontrar: uma mescla racial parecida com a nossa, pessoas sorridentes e gentis, calor, belas paisagens, uma boa dose de pobreza, passeatas pró e contra o governo, salsa e merengue, muita rumba. Caracas na minha imaginação era alguma coisa entre São Paulo, Cidade do México e Lima, e confesso que tinha uma curiosidade positiva a respeito do homônimo de meu herói preferido.

Assim que desembarquei no imponente aeroporto de Caracas cometi meu primeiro "vacilo" (sim, eles usam o mesmo verbo, e em sentido coloquial como nós!): troquei meus dólares numa casa de câmbio. Até um vira-lata sabe que, na Venezuela, o negócio é recorrer ao mercado negro, que paga quase três vezes o que te dão oficialmente. Brasileira e, portanto, muito "esperta", só fui entender o que todos aqueles homens acenando com dólares queriam comigo quando cheguei ao hotel.

Nos meus primeiros dias em Caracas, cidade de arquitetura moderna e caótica, ainda não estava muito certa de que não havia ido parar em Cuba. Por todos os lados, aonde quer que fosse, havia propaganda. Chávez em poses heróicas, dramáticas, com aliados políticos, entregando obras, beijando criancinhas, liderando a revolução, vestido de guerrilheiro, em trajes de gala, momentos informais... Há inclusive o boneco "Chavecito", que parece mais um namorado da Barbie. Os slogans políticos são assim de sutis: "Socialismo o muerte!", "Rumbo al socialismo del siglo XXI", "Chávez hasta 2021"... Tive sérias dúvidas de que um governo que investe tão pesado em propaganda assim, massiva, possa realmente ser levado a sério.

A atenção venezuelana é (in)digna de nota. Impossível não perder a calma, principalmente nos primeiros dias, de reconhecimento do terreno. Ninguém te dá bola, trabalham como se fizessem um favor, conversam sem o menor pudor sobre assuntos íntimos e pessoais enquanto você simplesmente aguarda com cara de tacho. Entrei em lojas em que me ignoraram solenemente. Esperei dez minutos para comprar um maço de cigarros. Comparei preços ridiculamente díspares em um raio de cinco metros. Comprar ou não é uma escolha toda sua, ninguém tenta te influenciar, te seduzir. A lógica do comércio venezuelano é de "quanto pior, melhor". Basta ser um pouco mais rude que eles para que te entendam direitinho. Um pouco complicado, mas com o tempo você pega o jeito.

É preciso dizer que, por causa do tal socialismo, que prega abertamente a expulsão de empresas estrangeiras do país, faltam muitas mercadorias nas prateleiras. Comprar carne, só chegando às quatro da tarde de terça-feira ao supermercado. Alguns produtos, como queijo, não são encontrados durante meses. Chega a faltar cerveja em feriado, o que dispensa comentários. Montado em petróleo e blefando com a carta mais alta do baralho da economia atual, Chávez adora patrocinar países amigos, como a Bielorrússia, Bolívia, Cuba, Argentina... mas acaba ferrando seu próprio povo.

Muito da indignação popular traduz-se em protestos, que nesta era Chávez ocorrem semanalmente. Claro que, como tudo que abunda, já deixaram de ser novidade, mas continuam ocorrendo com freqüência. Há uma considerável parcela da população que não admite, entre vários retrocessos, o fim da propriedade privada, o fechamento de um canal de TV com mais de meio século de existência, ou a proibição do fio-dental nas praias, para ficarmos em exemplos totalmente distintos, mas igualmente absurdos. A oposição, na prática, não existe, já que boicotou as eleições de 2006, e perdeu representação em todas as esferas do poder. O que acontece é a sociedade fazendo barulho sem intermediários, expressando seu descontentamento por si só. Talvez pudéssemos aprender algo com isso, em vez de realizar inúmeras passeatas pela paz, cheias de celebridades-para-ver–na-Globo.

Intensos, eles. Não são assim, propriamente pacíficos, os venezuelanos. Falam alto, ignoram para inibir, xingam a torto e a direito, querem se impor a todo custo... perdi a conta de quantos casais vi estapeando-se na rua, de quantas discussões entre mulheres presenciei em banheiros, bêbados ameaçando-se mutuamente com garrafas partidas, crianças malcriadas que eu mesma chegava a repreender na frente das próprias mães... Entretanto, por baixo dessa casca grossa, sabem também ser doces, generosos e prestativos. Lembro-me de Nora, a porteira de uma pousada de película em que vivi por quase um mês. Quando cheguei, fez cara de tédio e explicou, muito rígida, as regras do lugar: pagar a diária com um dia de antecedência, trancar a porta da casa após as 23h, não levar visitantes... um belo dia falei mais alto, dei de ombros e deixei-a gritando com a parede. Quando cheguei, às cinco da manhã, encontrei-a enrolada numa mísera toalha, varrendo freneticamente o chão –era um hábito seu! -, muito simpática e perguntando-me se eu já queria tomar café! Depois dessa, viramos amigas de infância, retribuíamos mil gentilezas, ríamos juntas das últimas fofocas.

E, assim como os brasileiros, são loucos por praia. Mas, ao contrário de nós, não têm o menor pudor em pagar de farofeiros. Chegam bem cedo, em hordas enormes, trazendo consigo seus isopores lotados de cerveja e rum, comem de tudo que seja vendido na praia (mariscos são os hilários "rompe-colchones"), namoram despudoradamente, dançam, brigam, choram, vivem intensamente (e em especial) sob o sol... mas ao ir embora deixam tudo espalhado pela areia. Em alguns lugares, sequer há lixeiras. Em um país com tantas belezas naturais, chega a ser um crime, cometido com a ignorância mais inocente do mundo.

Pode esquecer o trânsito de São Paulo, Roma, ou qualquer lugar de doidos notórios ao volante. O de Caracas é, indiscutivelmente, o pior de todos! Como a Venezuela praticamente flutua sobre petróleo, a gasolina lá é a mais barata do mundo. Se com o equivalente a quatro reais dá pra encher um tanque, a lógica é a de que todo mundo tenha carro. E se todos saem às ruas motorizados, e ainda por cima inventando regras próprias de trânsito, imagine no que dá. O venezuelano comum não usa cinto de segurança, buzina como se tocasse bongô, bebe ao volante sem a menor cerimônia... E se anda em moto não sabe o que é capacete, nem mão e contramão, e ainda acha que na garupa pode levar até quatro pessoas (juro que vi!).

Agora, surreal mesmo, é viajar de ônibus pelo país. Não que as coisas não funcionem direitinho, pelo contrário, tudo segue dentro dos conformes, há inclusive check-in igualzinho aos de viagens aéreas; tortura chinesa é viajar sem agasalho. Se possível, leve consigo cobertor de lã, cachecol, gorro e luva. O frio é absurdo, e a sensação é de que a temperatura cai uns dez graus dentro do ônibus! Desnecessário lembrar que a Venezuela é um país quente, fica então a pergunta que não quer calar: por que o ar condicionado dos ônibus não pode ser regulado para uma temperatura condizente com o bom senso tropical?


Venezuelanos são absolutamente malucos por música. Mas que essa paixão aflore a todo volume, em praticamente todos os meios de transporte, foi um pouco difícil de assimilar, no começo. Lembro da primeira vez que viajei em táxi, forçada a escutar o último disco de Marc Anthony (marido de Jennifer Lopez, ótimo cantor, por sinal), de cabo a rabo, numa altura bem acima dos decibéis recomendados pela OMS. Imaginem meu estado, após não dormir uma noite inteira, tremendo de medo das quatro baratas e da aranha que estavam no meu quarto, no único hotel que eu podia pagar em uma cidadezinha pavorosa. Zumbi-morta-viva, entro no carrão-banheira e fico entre o choque e o choro, esperando algum dos outros cinco (!) passageiros reclamar do barulho absurdo. Necas, na verdade parecem até gostar da coisa. Após três horas de muita salsa, direção perigosíssima e aperto entre dois gorduchos, comecei até a cantarolar algumas melodias e mexer os ombros em movimentos circulares. No final valeu a pena! Como prêmio pela minha paciência, o motorista me convidou para um café e de quebra me deu uma aula sobre salsa, da qual saí maravilhada.

No final das contas, após incontáveis trajetos entre a cidade grande e a praia, eu já achava o máximo andar em ônibus decorados no estilo mais cafona possível, em velocidade suicida e escutando reggaeton em níveis ensurdecedores. Se há crianças, idosos, gente doente, deficientes a bordo, nada tem importância. Quando a viagem começa, tem início também a festa: todo mundo assobia, canta junto, bate palmas, faz coreografia... Já quando o CD – obviamente pirata - pula, todo mundo vaia, reclama, acha ruim, enfim, faz um escarcéu. Outra situação recorrente é o ônibus, quase sempre caquético, começar a soltar fumaça. Daí é parar, fumar um cigarro filado, tomar café fresquinho vendido na beira da estrada, esperar o motor esfriar... Irritar-se é pura perda de tempo, um tremendo contra-senso.


A Venezuela, assim como esse Brasilzão de meu Deus, não é para principiantes. É América Latina efervescente, com todos os seus excessos, pecados, beleza, lascívia, alegria, falta de ética e de educação, muita miséria, malandragem, políticos de quinta, populismo terceiro-mundista da pior espécie. Impossível não se identificar culturalmente com as situações as mais corriqueiras, a desorganização urbana, a falta de rumos para a nação, o descaso com que nos sentimos tratados, não admirar-se com a maneira tortuosa de demonstrar afeto, com a vontade perene de festejar e sair cantando e dançando, em pleno estado de graça simplesmente pelo fato de viver nos trópicos. Nós e eles brincamos nossas festas religiosas sem culpas. Comportamo-nos de maneira insolente e arrogante. Comemos arroz e feijão todos os dias. Destruímos nosso meio-ambiente, ignoramos nossos pobres, (re)elegemos palhaços, sofremos há séculos por conta de malditas heranças históricas, assistimos apáticos a seqüências crescentes de violência e criminalidade, perguntamo-nos, diariamente, aonde vamos parar... Não se nasce latino impunemente. Todos temos de pagar um preço por vivermos intensamente o hoje, sem pensar no amanhã, porque tudo o que queremos é ser felizes, aqui e agora.

Fotos: stencil em Caracas, praia de Santa Fe, Chuao, busão em Maracay, diablo danzante de Chuao

Locômbia










Tio Mario,

Demorei em responder seu e-mail sobre a Colômbia, mas agora escrevo com a calma e o distanciamento necessários. Sabe-se muito pouco sobre o país, todo mundo me dizia "por que a Colômbia?", mas depois de haver estado lá, me pergunto como não fui antes. Senti vontade de ir por ser o cenário dos livros de García Márquez. Um país capaz de inspirar tão maravilhosas histórias deveria ser, de alguma maneira, singular, fantástico, e certamente muito mais complexo do que estereótipos preconceituosos me permitiriam entender.

Foi indescritível avistar pela primeira vez a legendária Cartagena de Índias, "La Heróica", cidade de nome lindo e exótico, princesa entre as mais belas cidades da América do Sul. Princesa porque intensamente cobiçada por piratas, indígenas e colonizadores espanhóis, que, com o intuito de protegê-la, construíram enormes muralhas ao redor de uma península natural e geograficamente perfeita, e que resistem firme atá hoje, preservando uma arquitetura colonial praticamente intocada há quatro séculos.

A visão de Cartagena, de fora das muralhas, diante do Portal del Reloj, é de sonho. A cidade simplesmente reluz, como uma jóia sob o céu de azul intenso e sem nuvens. O ar quente do Caribe entorpece a visão, mas realça a beleza de seus pátios e casarões, das torres de suas igrejas, de suas plazas, bem guardados por muros rosados, e que disputam entre si as atenções dos turistas. Cartagena é única por suas cores intensas, pela força de seu magnetismo, pela sensualidade de seus habitantes. No Caribe a vida tem outro ritmo, o cotidiano se desenrola ao som de muita música, carros buzinando, de gente gritando, vendendo, conversando, rindo, enfim, vivendo como se não houvesse amanhã.

Também nutria imensa curiosidade sobre Medellín, a querida Medallo, atual motor econômico da Colômbia e cidade das artes, que foi, durante os anos 90 ("Metrallo"), mais ou menos o que Bagdá é agora, para os noticiários, nos anos 2000. Longe de como imaginava, constatei que Medellín é uma cidade de respeito, modelo em termos de administração e segurança publica, e não mais o caos deflagrado pelo poder quase sem limites de Pablo Escobar (Que personagem, o cara. Saiu do nada e se converteu em um dos mais homens mais ricos do mundo. Distribuía casas e casas aos mais pobres de Medellín. Ofereceu-se para pagar, sozinho, toda a divida externa da Colômbia. Dizia preferir uma tumba em seu país que uma prisão nos EEUU). Trabalhadores, austeros e levemente arrogantes (diz-se deles que têm pretensões separatistas) os paisas, como são chamados, orgulham-se de ter o único metrô do país, por sinal moderníssimo, com direito a bondinhos como os do Pão de Açúcar (na verdade cabines paraaté duas pessoas), que parecem conduzir ao alto dos Andes, mas que na verdade levam aos barrios mais afastados da cidade.

Medellín é a capital do tango fora da Argentina. Tive a sorte de visitar a cidade durante seu Festival Internacional, e me maravilhei com pessoas de todas as classes sociais e idades, dançando apaixonadamente ao som de uma orquestra de tango, exibindo-se com orgulho (e talvez afirmando secretamente, "não danço salsa, nem cumbia, e sim tango!"). Mais tarde me lembrei de que Carlos Gardel morreu em um acidente aéreo, voltando para a Argentina justamente de Medellín.

A cidade deu, sim, um enorme salto quantitativo em termos de controle da criminalidade, nos últimos 20 anos. Um bom livro para entender o que foi a cidade nos anos 90 é "Rosario Tijeras", que saiu há pouco no Brasil. Li de uma tacada em uma viagem de ônibus.

E claro, Santa Fé de Bogotá (os nomes são lindos de morrer!), que me surpreendeu de cara pela altitude (2600m) e pelo frio (14°). Subir as ladeiras da Candelária nos primeiros dias exige fôlego de atleta boliviano, mas aos poucos o organismo vai se ajustando. Em um só dia é possível vivenciar todas as estações do ano. O céu pode amanhecer nublado, para logo mais abrir com sol forte, e ao final da tarde cair um aguaceiro. A cidade vive uma espécie de inverno constante, já que a temperatura varia pouco, devido à proximidade da linha do Equador.

Bogotá é muitíssimo bem organizada. Tanto, que chega a confundir uma brasiliense, mais acostumada com números do que nomes em endereços. Ruas que correm paralelas ao cerro Monserrate, ou seja, no sentido norte-sul, chamam-se carreras, e as perpendiculares, que vão de leste a oeste, são as calles, todas numeradas. Tudo muito simples, não fosse pela confusão inevitável causada pelo uso freqüente de pontos cardeais para se orientar, muito usual para eles, mas complicadíssimo para nós: "Siga rumo ao sul e quando chegar à esquina vá em direção ao leste". É mole?

Bogotá tem áreas curiosas, como a do baixo meretrício, que se estende por vários quarteirões e funciona a todo vapor em plena luz do dia, bem no centro, e uma esquina de mariachi 24 horas, que circulam a espera de montar, aos bandos, em caminhonetas que os levem a alegrar pedidos de casamento, namoro e reconciliações.

Colombianos são trabalhadores natos, praticamente incansáveis (chegam, sim a cansar a gente, às vezes, com tanta eficiência). Tudo é "a la orden", nem bem vêem alguém se aproximando e já tentam empurrar todo tipo de produto: comidas e bebidas feitas na rua, calças jeans de todos os modelos, artesanato belíssimo, as inacreditáveis "llamadas" (pessoas oferecem celulares para os transeuntes fazerem telefonemas), água vendida em bolsas de plástico (um pouco estranho a princípio, mas funcionais e bem mais baratas que engarrafadas), tocadores de mp3 que já deixam de funcionar na primeira esquina, livros (literatura!) pirateados, passagens de ônibus para sabe-se lá onde, dólares falsos, roupa íntima colombiana, CDs e filmes ainda nem lançados, cacarecos velhos e inúteis em embalagem de fábrica. Incrível constatar como a malandragem por lá é exercida de maneira elegante e muito profissional. Você dificilmente vai deixar de cair em algum truque. Coisa de deixar carioca no chinelo.

Da costa caribenha, passando pelas três cordilheiras que cortam o país e descendo rumo a Cali, cidade com a maior concentração de salseros do país, os colombianos dançam, celebram a vida, tomam rum e sabem se divertir como poucos no continente. São hospitaleiros, simpáticos, prestativos, amáveis... além de serem educadíssimos, politizados - quer saber sobre a história política recente do país, basta tomar um táxi - têm grande senso de humor, falam um espanhol impecável, considerado pelos próprios hispânicos como o melhor das Américas. Vá a qualquer lugar, por mais remoto que seja, no país, e deixe-se mimar pela gentileza das pessoas (especialmente se teve alguma experiência prévia na Venezuela). Tudo isso com um adendo: independe de classe social. Algo notável e surpreendente, no que diz respeito a uma América Latina de mentalidade predominantemente terceiro-mundista.

Creio que podemos nos sentir privilegiados porconhecer um lugar tão belo, divertido e intenso, a uma só vez mágico e real. A Colômbia é, definitivamente, o segredo mais bem guardado da América do Sul.

Fotos, em ordem: cartazes políticos, centro de Medellín, vista de Bogotá e rua de Cartagena.