Berlim é uma das minhas grandes cidades-paixões. Voltar é um pouco estranho às vezes, mas na verdade é sempre bom. Como um amor que não acaba, mas que precisa de um pouco de ar, de espaço, de tempo para renascer com força cada vez que nos encontramos.
Tenho uma relação profundamente especial com a cidade, que me causou um entusiasmo de menina assim que pus os pés na antes mítica e hoje turística Alexanderplatz. Lembro-me de acompanhar a história de Berlim ainda na escola, mesmo sem entender muito bem o que era Cortina de Ferro, por que havia duas Alemanhas que eram inimigas, qual a importância de um muro cair.
A cidade, ou pelo menos um lado dela, o ocidental, era uma ilha de capitalismo dentro de uma Alemanha comunista. Sim, porque Berlim está no lado oriental do país, que após a 2ª Guerra Mundial alinhou-se politicamente com os russos. Durante a ocupação do país pelos países aliados, a cidade foi inicialmente dividida em quatro setores: americano, inglês, francês e russo. Os três primeiros, ideologicamente afinados, reuniram-se sob o nome de Berlim Ocidental após o fim do conflito, e pertenciam à Alemanha Ocidental. O último tornou-se Berlim Oriental, a capital da Alemanha comunista.
Durante 28 anos a cidade foi duas, algo inédito no mundo. Um muro separava dois regimes em confronto, que competiam silenciosamente entre si. Tinham que impressionar-se mutuamente, demonstrar a pujança de suas altas torres, de seus edifícios arrojados e enormes, a eficiência de seus meios de transporte, a ostensiva vigilância de suas fronteiras, as benesses de seus sistemas de governo. Obviamente, a coisa parecia uma competição fraternal, do tipo que pode ser (e foi, algumas vezes) fatal, mas também um tanto pueril.
A parte ocidental da cidade era uma espécie de „Résistance“. Quem conseguia pular o muro vindo do comunismo tinha direito imediato à integração ao mundo capitalista, recebia passaporte, documentos, ajuda de custo para se estabelecer. Já quem decidia fazer a ponte aérea, migrando da Alemanha Ocidental para a „ilha“ capitalista no meio do comunismo, era dispensado do serviço militar, recebia subsídios e pagava menos impostos, e os imigrantes que chegavam à Alemanha capitalista eram estimulados a morar em Berlim Ocidental, como uma forma de não permitir que a cidade sucumbisse ao regime vermelho.
Deve ter sido realmente comovente ver todo esse embate acabar de uma hora pra outra. Especialmente para os alemães orientais. A maioria deleitou-se com as liberdades do sistema capitalista. Mas muita gente perdeu a razão de viver, especialmente quem realmente acreditava e militava pelo socialismo.
Hoje, 18 anos após a queda do muro de Berlim, a cidade é uma das mais instigantes metrópoles européias. O lado oriental foi invadido por jovens atrás de aluguéis baratos e de liberdade, numa parte antes proibida da cidade. Para acompanhar o passo da modernidade, Berlim Oriental foi sendo gradativamente revitalizada, desde Mitte, bairro central, hoje caríssimo, para os lados de Prenzlauer Berg, já um tanto chique, e atualmente a renovação se move para os lados de Friedrichshain, último refúgio (já conquistado) dos adeptos da cultura underground.
Desta vez fiquei hospedada em Friedrichshain e Prenzlauer Berg. Não estava próxima do metrô, mas em compensação andei direto de bonde, o famoso M10, que cruza os dois bairros e nas sextas e sábados à noite tem a maior concentração de boêmios e estudantes da cidade, pois é entre os dois lugares que a noite berlinense acontece. Há tantos bares, restaurantes, discotecas, festas improvisadas em casas ou edifícios clandestinos, que às vezes parece um milagre que todos consigam sobreviver financeiramente. Há público para todo tipo de serviço, o que, em uma cidade com sérias dificuldades financeiras, é louvável.
Quem vem para Berlim tem a vontade de experimentar, de criar, de conhecer e discutir novos pontos de vista sobre vários temas, encontrar o diferente, sentir-se em casa no meio de tanta informação vinda de todas as partes. Aqui todo mundo se sente livre, e a tolerância é a marca registrada da cidade. A polícia convive bem com os punks, que por sua vez abordam respeitosamente as senhoras elegantes de Charlottenburg, que têm compaixão pelos asilados políticos que acabaram de chegar, que encantam os estudantes do Leste Europeu, que adoram se divertir nas festas latinas, e todos já sabem que aqui fica a maior concentração de turcos fora da Turquia. Basta andar na rua por uns poucos quarteirões para entender porque a cidade é especial. Todos têm aqui seu lugar ao sol (ou melhor, ao vento gelado que vem da Polônia) e há uma cumplicidade cultural muito grande entre todos.
Um de meus passatempos preferidos é tomar o metrô amarelinho, de preferência cruzando o bairro multiculturalíssimo de Kreuzberg, e viajar pela cidade de uma ponta à outra. Mesmo unida, Berlim permance duas em uma. O lado oriental é mais alternativo e atualmente mais turístico, com sua juventude efervescente, subversiva e livre, circulando quase sempre de bicicleta em ruas tomadas por graffitis e cartazes de festas, por entre construções grandiosas e um tanto anacrônicas. Já o lado ocidental é mais convencional, com muita gente de muitos lugares, letreiros em vários idiomas, arquitetura mais refinada, comércio mais caro e elegante, e mais pessoas circulando em carros.
Certamente há no mundo poucas cidades tão culturalmente abrangentes como Berlim. Aqui me sinto em casa, recebida de braços abertos (e com um certo mau humor típico) pelas pessoas que aqui nasceram ou escolheram tornar-se berlinenses de coração. Desfruto da infra-estrutura duplicada que faz de Berlim tão completa, de uma oferta cultural democrática e excelente, me encanto cada vez mais com o colorido que uma cidade de clima tão cinza consegue ter por causa das pessoas que vieram pra cá, dispostas a viver uma experiência urbana única. Só em Berlim eu sou capaz de passar todo o inverno sem pensar muito sobre ele, o que não é pouca coisa.
Muito do que eu sou hoje devo a esta cidade pela qual me apaixonei no momento em que cheguei pela primeira vez, há oito anos. Obrigada por me receber mais uma vez tão bem, Berlim. Volto em breve, pode esperar.
Um comentário:
texto lindo nêga....saudades!
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